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Além da retórica do olho negro. Algumas reflexões sobre a representação visual da violência de género em Portugal

Era um dia de chuva do ano passado e estávamos na semana que antecedia o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, o 25 de novembro. Numa das minhas habituais subidas pela ruela que leva ao edifício do ICS, onde se encontra o meu lugar de trabalho, parei um instante. No ecrã de um dos institutos instalados nos prédios que ladeiam a ruela, vi a imagem de uma campanha de sensibilização contra a violência doméstica e no namoro. O sujeito representado, uma mulher, exibia os sinais de abuso físico. O seu rosto feminino com nódoas negras estava ali, a captar a atenção dos transeuntes para sublinhar quão deplorável é a violência e quanto essa mesma violência, nas suas vertentes mais íntimas e “privadas”, afeta maioritariamente as mulheres. Não fiquei surpreendida; não era nova a este tipo de encontros iconográficos, nenhum de nós o é. A retórica visual da “mulher vitimizada”, assim a Saveria Capecchi (2020) chamou a tendência a representar as vítimas de ataques misóginos como mártires imortalizadas na gaiola simbólica da própria objetificação, ainda é pervasiva em Portugal. Um estudo (Esmeraldo Nogueira, Simões & Sani, 2022) sobre campanhas publicitárias institucionais contra a violência doméstica sublinhou como várias das iniciativas de sensibilização promovidas no país utilizam estratégias de captação emocional da atenção, baseadas na amplificação visual de elementos que remetem para a esfera semântica do ataque físico (principalmente hematomas). O que diz muito a respeito de como a sociedade portuguesa é chamada a enfrentar o problema da violência de género através de procedimentos representativos que re-vitimizam as mulheres e as outras (quando presentes) categorias identitárias retratadas. A ainda escassa literatura científica sobre o tema demonstrou como o uso de imagens graficamente explícitas, onde a vitimização é traduzida em estímulo visual direto, provoca reações mais fortes e até uma maior possibilidade de engajamento de quem vê (Binik, 2020). Apesar disto, a mesma literatura acrescenta que as mulheres e pessoas vítimas de violência doméstica ou no namoro não se reconhecem nas campanhas de sensibilização institucionais que lhe são dirigidas (Neal & Weathers, 2022). Isto não surpreende, se pensamos que a retórica visual do olho negro, reproduzida nestas campanhas, não corresponde à realidade do fenómeno da violência de género - um fenómeno que, muitas vezes, assume formas de abuso psicológico, manipulação financeira, isolamento social da pessoa vitimizada, para mencionar apenas algumas das várias manifestações não diretamente físicas do problema. Lembro-me das palavras de Alice Degli’Innocenti, uma ativista da rede italiana D.I.Re (Donne in rete contro la violenza) que trabalha na casa de acolhimento para mulheres Vivere donna, em Carpi (Itália). Numa entrevista que lhe fiz para saber como é que os centros de apoio a vítimas de violência em Itália abordam a representação visual do abuso machista nas campanhas de sensibilização que promovem, Alice falou-me da decisão que as organizações que integram a associação D.I.Re já tomaram há alguns anos, ou seja, aquela de evitar insistir na iconografia da mulher espancada, da vitima absoluta e eternizada na sua suposta inércia. Na experiência de ativismo de Alice, esta prática de representação revelou-se danosa porque traduz-se, muitas vezes, na incapacidade de operadores policiais ou do sistema judicial em reconhecer a vitimização de uma pessoa que faça queixa sem apresentar sinais visíveis de abuso. Mais em geral, o discurso feminista tem criticado a abordagem da visualização explicita do ataque misógino por reproduzir e, consequentemente, reafirmar a dicotomia patriarcal que opõe uma feminilidade passiva e sempre objetificada a uma masculinidade ativa e sempre subjetivada. Este padrão simbólico, que Pierre Bourdieu (2013) reconheceu como constitutivo das dinâmicas vigentes nas sociedades mediterrâneas e não só, é uma das causas principais da violência de género e alimenta-se constantemente com a estetização da vitimização feminina. 

Infelizmente, este discurso não parece ter enraizado no contexto da comunicação institucional portuguesa.  Apenas alguns meses antes do 25 de Novembro de 2023, os painéis digitais das estações do metro do Porto, a cidade onde vivo, encheram-se com as imagens da campanha “Não há desculpas para a violência doméstica”, lançada com o patrocínio da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. As duas fotografias que compõem a campanha representam uma mulher e um homem cujos rostos, com feridas e hematomas, estão repletos de retângulos que evidenciam os sinais de violência e indicam a data em que os abusos aconteceram. A componente textual da campanha esclarece a abordagem visual: “As desculpas para o que lhe fez são uma data delas”, diz a legenda.  A escolha de representar a real (mas estatisticamente menor) vitimização masculina é só parcialmente feliz, pois evidencia a exclusão, do regime de visibilidade, de outras categorias identitárias que rejeitam o binarismo de género. Além disso, as vítimas de violência doméstica continuam a ser retratadas como indivíduos desprovidos de agencialidade e cuja reconhecibilidade é inevitavelmente associada à presença de marcas físicas objetificantes.

Na altura da campanha da CIG, uma maneira que encontrei para desafiar a tendência de expor imagens problemáticas de vitimização foi administrar uma oficina de subvertising no âmbito do acampamento feminista Circuitos (15-17 setembro 2023, Ponte da Barca) organizado pelo coletivo Feminismos Sobre Rodas, uma prática de envolve a modificação satírica de campanhas publicitárias para criticar a mensagem original. Pedi às pessoas participantes, mulheres e pessoas não binárias, que mexessem com o cartaz usando técnicas de assemblagem acessíveis e baratas. Os resultados, alguns dos quais são reproduzidos aqui abaixo, visaram ocultar criativamente as nódoas negras e as feridas, substituindo-as com elementos e escritas que veiculam ideias de força e vitalidade, sem desconhecer o sofrimento causado pela violência e sem negar a dimensão traumática do encontro com o abuso.

Figura 1, autoria anónima
Figura 2, autoria anónima

É só assim, por meio de manuseamentos e alterações que desafiem a retórica imagética da vítima aniquilada, que a esfera do visual pode tornar-se um espaço de verdadeira resistência ao imperativo da violência na nossa sociedade ainda pronunciadamente patriarcal. E é só através do diálogo entre as instituições, as organizações feministas e a comunidade académica que a mudança é possível. Foi mesmo na ausência deste diálogo que pensei quando a visão daquela imagem me obrigou a parar, naquele dia de chuva que antecedia o 25 de novembro, antes de abrir a porta do meu escritório para trabalhar, como faço diariamente, sobre representações visuais de violência de género.

Referências bibliográficas

Binik, O. (2020). The Effectiveness of Communication Campaigns on Violence against Women: Suffering, between Reality and Representation. Comunicazioni sociali: Journal of Media, Performing Arts and Cultural Studies XXXX. X, 1-17.

Bourdieu, P. (2013). A Dominação Masculina. Lisboa: Relógio D’Água. Trad. Júlia Ferreira

Capecchi, S. (2020). Le campagne sociali italiane contro la violenza maschile sulle donne: come uscire dalla rappresentazione della ‘donna vittimizzata’?. In Pina Lalli (Ed.), L’amore non uccide. Femminicidio e discorso pubblico: cronaca, tribunali, politiche (pp. 275-290). Bologna: Il Mulino.

Esmeraldo Nogueira, E., Simões, E. & Sani, A. I. (2022). Análise de campanhas publicitárias institucionais no combate a violência doméstica. Estudos em Comunicação 35, 1-25.

Neal, E. A. & Weathers, M. (2022). ‘That’s not me!’ A Qualitative Analysis of Survivors’ Perceptions of Intimate Partner Violence Campaign Advertisment. Texas Speech Communication Journal 46, 46-62.

Texto por Nicoletta Mandolini

Investigadora Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade

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