Ressonâncias entre a arte (na galeria) e o quotidiano (na publi-cidade): em jeito de assemblage
A designação assemblage terá sido avançada por Jean Dubuffet, pintor e crítico de arte francês, nos anos 50. Admite-se que “a assemblage – reunião de vários objetos do cotidiano ou descartados em obras de arte – desenvolveu-se a partir das colagens cubistas de Picasso, de 1912, e dos ready-mades de Duchamp, de 1913” (Hodge, 2019, p. 205). É precisamente este encontro, entre a arte e o quotidiano, na interseção entre a aparente erudição da linguagem artística e a banalidade das experiências vividas em coabitação com os mais prosaicos objetos do dia-a-dia, que aqui visamos celebrar. Pesquisando sobre a vida e obra de Dubuffet, descobrimos ainda que o mesmo terá fundado, em 1948, a Companhia da Arte Bruta. A Art Brut, expressão igualmente atribuída ao artista e crítico, criada em 1947, estará associada a criadores sem formação artística, a psicóticos e a crianças, assim como a culturas populares arcaicas e populares ou, ainda, ao graffiti. Atente-se na obra intitulada Banda Jazz (1948), de Dubuffet, cujos efeitos estéticos são percebidos em aproximação ao graffiti (Porto Editora, 2022).
Tendo em consideração dois princípios desde já identificados - por um lado, o cruzamento entre a arte e o quotidiano e, por outro, a criação desenvolvida fora do sistema tradicional e académico da art (Outsider Art) -, este breve ensaio propõe-se sugerir uma leitura que atravessa, e pretende aproximar duas propostas de criatividade, em particular.
Em primeiro lugar, debruçamo-nos sobre a obra escultórica da artista Zélia Mendonça, composta sob a forma de assemblages, uma série de bustos ou manequins revestidos com os mais variados objetos. Zélia Mendonça é uma artista brasileira autodidata, que se revela ao público, no contexto do mundo da arte institucional, já com 58 anos de idade. Sobre o seu processo criativo, diz-nos a artista: “Eu sou assim, deixo-me levar pela intuição. Liberto através dos objetos significados a energia vital e provoco novas possibilidades para me expandir pela arte de criar. E isso toma a totalidade do meu cotidiano” (Pereira, 2021, p. 5). Expressando-se em contexto de pandemia, Zélia assume ainda a inscrição da sua obra na “arte bruta”, nos seguintes termos: “como sou mais intuitiva, encontrei no primitivismo uma forma de materializar minha imaginação, meus pensamentos e angústias que me cercavam neste momento histórico tão difícil da crise sanitária” (Pereira, 2021, p. 5). E ainda acrescenta: “porque como artista o que anseio é diálogo e expandir experiências. Usar fuxicos, contas, linhas, restos de souvenirs e sucatas, pintar, tudo isso foi uma espécie de busca, de tradições perdidas, de sentimentos alheios e rituais íntimos. Vejo cada objeto como restos de vários lugares” (Pereira, 2021, p. 5). A feliz descoberta das assemblages de Zélia Mendonça desperta-me para o meu próprio gosto, nascido ainda durante a infância, pela experimentação da mistura de diferentes peças de vestuário, bijuteria, sobrepostas em camadas e combinadas segundo formas inusitadas sobre o meu corpo, na sua função de manequim ao serviço das minhas experimentações. Ao mesmo tempo, sou transportada para outro lugar. A rua, lugar expositivo por excelência, e sobretudo lugar percorrido, onde me deixo levar pelo prazer da fruição das montras, de entre as quais as extemporâneas retrosarias que ainda resistem, e nos surpreendem, quais preciosíssimos tesouros, em algumas das nossas cidades. Nas esculturas de Zélia, reencontro um universo de linhas, rendas, fitas de cetim, alfinetes, botões, crochet… objetos mínimos expressivos de saberes antigos, de artes do fazer no espaço doméstico e feminino. Os corpos-busto de Zélia são decorados com um profuso festival de cores, formas, padrões, texturas, apresentando-se como lugares íntimos que simultaneamente comunicam, como diz a artista, com múltiplos lugares imaginários, uns, pertença da mulher-artista, outros, a explorar e a redescobrir pela(o) visionadora(o). Observa-se um certo carácter subversivo num tal exercício artístico, fazendo-nos pensar nas “práticas sub-reptícias” que, nas palavras de Michel de Certeau (1990/1998), permitem aos sujeitos, nos seus contextos do quotidiano, contornar a ordem pré-estabelecida, potenciando-se a performatividade da “linguagem”, no contraponto da “língua” que se impõe como código a seguir ou como sistema delimitador das ações individuais. Partindo do autor, propomos que se entenda aqui a cidade, experienciada como espaço público, ao serviço do propósito da partilha, assim como, paradoxalmente, do desvio, das práticas de enunciação que inserem os corpos individuais no corpo social, as narrativas singulares na escrita comum. É esse um dos fios com que Zélia tece a descrição do seu processo de criação: “…procuro a alteridade que amalgama tanto a história com H maiúsculo como os pequenos contos escondidos nas gentes todas que habitam as cidades por onde passo” (Pereira, 2021, p. 6).
Zélia Mendonça, Meu corpo, suas regras (2021) |
Créditos: https://zet.gallery/obra/meu-corpo-suas-regras-19802
Zélia Mendonça, Princesa (2015) | Créditos: https://zet.gallery/obra/princesa-17959
Zélia Mendonça, Virgem (2015) | Créditos: https://zet.gallery/obra/virgem-17961
Zélia Mendonça, Condessa (2015) | Créditos: https://zet.gallery/obra/condessa-17956
As práticas de caminhar pela cidade, que de modo especial me animam, poderão ser consideradas em aproximação às práticas de “costurar” de Zélia Mendonça, em ambos os casos exercícios de enunciação fenomenológica e imaginária. De um lado, uma prática criativa que se deixa conduzir pela impulsividade, pela(s) história(s) e pelas memórias. Do outro, uma prática de deambulação que conduz à descoberta da experiência sensível na relação com o corpo e a pele da cidade, o lugar comum, público, que ao mesmo tempo se apresenta enquanto sujeito universal e permite a cada um o “fazer com”, a afirmação individual pelo uso e pela reapropriação. É com este sentido presente que, em segundo lugar, proponho a leitura do suporte de publicidade outdoors com que me deparei numa das minhas recorrentes caminhadas sem destino (ver fotografia). No limite entre a rua e a entrada do Centro Comercial Gold Center, em Braga, a retrosaria que lá dentro, invisível aos passantes, reside, estende a sua “vitrine” com um manequim decorado com fitas diversas, ora de cetim, ora rendilhadass e bordadas, publicitando assim o negócio. O manequim é deslocado de dentro para fora, do lado de lá do que seria o vidro da vitrine, para o lado de cá, na entrada do Centro Comercial, quase a chegar ao passeio, já no exterior. Este exercício de distensão da fronteira que separa o exterior do interior da loja conduz-nos a perceber o espaço público como lugar de permanente negociação de (re)apropriações e de limites, lugar que é de todos, mas também do modo particular como cada um aí ensaia diferentes e criativos usos. No caso, trata-se de uma forma espontânea de publicidade comercial no espaço urbano, a meio caminho entre a forma do letreiro, da decoração da montra ou dos suportes tradicionais de publicidade exterior, como seriam os cartazes, ou a decoração do mobiliário urbano, os mupis, etc. Tal como nos manequins de Zélia Mendonça, também neste caso se encontra na técnica da assemblage solução criativa. Que leitura fazer de uma tal ressonância, acidental, que nos leva a aproximar a arte (na/da galeria[1]) da publi-cidade? O quotidiano, associado à criatividade do dia-a-dia e das práticas comuns, parece ser aquilo que costura os artefactos que aqui se evidenciam. Poderia mesmo introduzir-se, a partir deste exemplo, uma discussão, ainda em aberto, sobre os critérios estéticos de definição da arte. O que distingue ambos os tipos de criatividade? O processo? A finalidade? A existência, ou não, de uma valoração institucional legitimadora da obra e do artista? A manequim da retrosaria do Gold Center apresenta-se igualmente como uma prática criativa e original. Note-se que as duas caminhadas, espaçadas no tempo, que empreendi, permitiram-me registar variações no revestimento do suporte, parecendo que é dada expressão ao desejo renovado de criação (numa das duas variações, por exemplo, observa-se a simulação de uma saia feita de fitas e uma gola de pluma, havendo diferenças entre as duas manequins fotografadas). Também na arte de Zélia, cada manequim é única, não fosse a originalidade da obra um dos seus princípios mais basilares, por definição. A autora ou autor do exercício criativo publicitário, porém, ao contrário do que por regra acontece no mundo da arte, é anónima(o). Não é meu propósito discutir as semelhanças e diferenças entre a arte e não-arte, a criatividade artística e a criatividade publicitária. Tão só, explanar sobre os efeitos de ressonância que aproximam, ainda que inadvertidamente, ambos os mundos, quando as respetivas práticas se inspiram no papel dos objetos, por mais mínimos e insignificantes que pareçam, do nosso quotidiano. Tal acontece, talvez, porque tanto na arte (ou em parte dela), como na publicidade, se intersetam os lugares público e privado, muito embora de modos e com distintas vocações. Em ambos os registos, o território do imaginário, povoado de imagens, acolhe o nosso habitar, falando tanto à nossa individualidade quando ao nosso ser-em-comum: “as imagens, em especial, dadas as suas possibilidades de descodificação a um nível antropológico, literal, suscetíveis de identificação (quase) imediata, nos termos de Roland Barthes (1964), constituem um metaterritório (Felice, 2012) privilegiado, um lugar de novas socialidades. O encontro entre o indivíduo e a sociedade faz-se, na contemporaneidade, por meio da interseção entre o privado (aquilo que diz respeito a cada um) e o público (a vida ativa comum), num espaço simbólico híbrido, de natureza irremediavelmente intervalar, num inter-esse (Arendt, 2001), de que a publicidade se ocupa de modo especialmente oportuno e eficaz” (Pires & Mesquita, 2018, p. 6).
Braga, 2022 | Créditos: Helena Pires
Braga, 2022 | Créditos: Helena Pires
Texto de Helena Pires
Investigadora CECS
Referências:
Certeau, M. (1990/1998). A invenção do quotidiano. Artes de fazer. Editora Vozes.
Hodge, S. (2019). Breve história da arte moderna. Gustavo Gili.
Porto Editora – Jean Dubuffet na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-04-24 08:54:46]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$jean-dubuffet
Pereira, H. M. (Curadoria Editorial) (2021). Zélia Mendonça _ senhora das mudanças. Astronauta – Associação cultural.
Pires, H. & Mesquita, F. (Eds.) (2018). Publi-cidade e comunicação visual urbana. CS Edições.
[1] Em 2021, em Braga, na zet galley, teve lugar a exposição “Zélia Mendonça. senhora das mudanças”.
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